Ranking dos anos 2000

Nada como uma lista pra reviver o blogue. A pedido da Liga dos Blogues Cinematográficos, aqui vai uma lista de 20 filmes dos anos 2000 (o que conta, para a lista são os filmes que vão de 2000 a 2009).

Difícil e prazerosa de fazer como a maioria das listas, mas com um pouco menos de critério. Vários diretores que gostaria de ter incluído ficaram de fora (Tarantino, Chabrol, Godard, Errol Morris, Bellocchio, Almodóvar), outros de quem gostaria de colocar mais de um filme (Claire Denis, Coutinho, Guy Maddin, James Gray), todos ficaram de fora pela restrição evidente.  Vamos à lista, com comentários-pílula sobre cada filme:

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01- Cidade dos Sonhos
(Mulholand Drive, 2001), de David Lynch
Incrível como o filme rapidamente se sedimentou como um marco do cinema do novo século, o que faz a gente esquecer seu potencial poético e narrativo.

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02- Maria
(2005), de Abel Ferrara
A mais ousada defesa da fé como necessidade humana. Violência e paixão. A cena do diretor carregando seu filme embaixo do braço, no meio da ameaça terrorista, ainda é de arrepiar.

Two Lovers movie image Gwyneth Paltrow and Joaquin Phoenix
03- Amantes
(Two Lovers, 2008), James Gray
O filme desesperado da década. O mais romântico, um dos mais bem filmados.

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04- Marcas da Violência
 (A History of Violence, 2005), de David Cronenberg
Obra-prima de precisão e concisão. Tudo está no lugar, até o exagero. Uma tragédia familiar sobre aparência e essência.

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05- O Sabor da Melancia
 (Tian bian yi duo yun, 2005), de Tsai Ming-Liang
Um dos mais delirantes ovnis criados pelo cinema recente. E talvez o final mais surpreendente e amoral de todos.

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06- A Menina Santa
(La Niña Santa, 2004), de Lucrecia Martel
A maioria prefere O Pântano, mas para mim A Menina Santa é um passo a mais na construção climática peculiar de Lucrecia Martel. De certa forma, um filme de horror.

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07- 35 Doses de Rum
(35 rhums, 2008), de Claire Denis
Uma ode ao afeto! De pai e filha, de amigos, de amores. Vamos furar o pneu e dançar em um bar perdido no meio da noite!

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08- Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant
Ninguém filma a adolescência como Van Sant. Dúvidas, crescimento e mais dúvidas.

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09- Ervas Daninhas
(Las Herbes folles, 2008), de Alain Resnais
Como deixou claro no último filme (Vocês ainda não viram nada), Resnais está há um tempo fazendo o que quer, para nosso deleite. Delírio prazeiroso.

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10- Mal dos Trópicos
(Sud pralad, 2004), de Apichatpong Weerasethakul
Apichatpong é uma descoberta da década, e a minha se deu com esse filme. Um mergulho sensorial, em todos os sentidos.

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11- My Winnipeg
(2007), de Guy Maddin
Acho Guy Maddin um dos cineastas atuais mais mal compreendidos. Há muito o que se extrair do curto-circuito de nostalgia retrabalhada, humor absurdo e recriação documental de um filme como My Winnipeg.

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12- A História de Marie e Julien
(L’histoire de Marie et Julien, 2003), de Jacques Rivette
O melhor Rivette da década. O filme que ele abandonou no final dos anos 70 depois de uma crise de nervos. Emmanuelle Béart. Um grande filme sobre amores e fantasmas. Se você não vê motivos para ele estar aqui na lista, você não o merece.

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13- Lady Chatterley
(2006), de Pascale Ferran
Talvez o melhor filme feminista da década, mesclando sexualidade e política com uma força raramente vista.

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14- A Última Noite
(25th Hour, 2002), de Spike Lee
Uma porrada, um rojão, uma fluxo poderoso sobre a derrocada de pessoas dentro de uma cidade perdida.

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15- Sobre Meninos e Lobos
 (Mystic River, 2003), de Clint Eastwood
Eastwood encara de frente os temas fortes propostos pelo livro em que o filme se baseia: pedofilia, vingança, falsos julgamentos. O mundo adulto é complexo quase sempre e muitas vezes feio.

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16- Edifício Master
(2002), de Eduardo Coutinho
O ápice da arte de conversar, de ouvir, de se aproximar, de fazer as pessoas se crirarem em frente da câmera.

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17- Os Amantes Constantes
 (Les Amants réguliers, 2005), de Philippe Garrel
Garrel, o cineasta da melancolia, indo de 68 para 69, para depois mostrar que nunca estamos livres da dor.

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18- Lúcia e o Sexo
(Lucía y el sexo, 2001), de Júlio Medem
Para compensar a dor de Os Amantes do Círculo Polar, Medem propôs essa fábula. Mas que estranho e triste filme feliz é esse… Sensual, bem-humorado, sem frescuras. Uma proposta poética que parece ter parado por ali, infelizmente.

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19- As Coisas Simples da Vida
(Yi yi, 2000) de Edward Yang
Não um filme sobre o simples (há situações, inclusive, bem complicadas que o filme explora), mas sobre a necessidade da delicadeza nas relações humanas, por mais duras que sejam. Um cineasta que se foi cedo.

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20- O Mundo
(Shijie, 2004), de Jia Zhang-ke
A poesia do pastiche, do digital, do excesso, da alienação, que apesar de tudo, não conseguem se sobrepor à experiência das pessoas. Um novo olhar para um novo mundo.

Duas ou três coisas sobre Mad Men

Com alguns ótimos filmes vistos no feriadão, me sinto impelido a falar mais de uma série.

Que coisa. Não sou fã de séries. Confesso inclusive uma dificuldade pessoal em acompanhá-las, por diversas razões, combinadas ou não: a quantidade incrível de filmes que a história do cinema nos deixou e que merecem ser conhecidos ou revistos; a duração das séries, que nos obriga a perder um enorme tempo acompanhando-as; os limites que o cinema mais ousado alcançou e nos quais as séries estão longe de fazer cócegas.; a hiper-valorização de uma suposta “produção de qualidade”, da qual desconfio muito, e por aí vai um longo etecétera. Mesmo assim, o final dessa quinta temporada de Mad Men, que só agora pude ver, me dá ganas de pensar e repensar toda a série e o que faz dela uma exceção.

A série é criação de Matthew Weiner, o mesmo que já tinha feito um belo trabalho em Os Sopranos. Comecemos pelo óbvio: o “autor” de uma série é definido não pela noção fechada do diretor (cada episódio pode ter um diretor diferente), mas por aquele que a concebeu, define os arcos dramáticos de cada temporada, eventualmente dirigindo a season finale. Com Mad Men, Weiner parece ter encontrado o estado da arte desse tipo de autoralidade próprio de séries.

Me dou conta que Mad Men é a única série que vi (acompanhei poucas, confesso) que parece melhorar a cada temporada. Ela parece renovar o interesse pelo rearranjo extremamente convincente entre os personagens, pela excelência dos elementos (muito já se falou do elenco, dos figurinos e dos cenários da série como uma referência de padrão máximo) e, principalmente, por uma evolução dramática forte. Sim, porque se há uma pretensão descabida nas séries atuais por um padrão de qualidade alto (“melhor que no cinema”, diriam uns), me parece são poucas que se sustentam dramaticamente por muito tempo.

Tomemos como exemplo essa quinta temporada, então. Dos treze episódios, há um miolo meio morno, com uma ou outra situação mal-resolvida (o sobrepeso de Beth, caminho ousado em um primeiro momento, se resolve de maneira bastante sem graça). Mas nos três últimos episódios a coisa esquenta de um jeito bastante radical, eu diria (na falta de outra palavra melhor). Indo mais longe, talvez seja possível dizer que a dramaturgia da série, que já tinha mostrado sua potência em episódios anteriores, fazem com que ela alcance um sentido existencial ainda não experimentado.

Há o suicídio do sócio, que estava numa sinuca de bico por causa dele mesmo, mas que recebe o empurrão final pela decisão dura de Don Draper. Não havia outra maneira, não havia mais como confiar nele, Don só fez o que podia fazer. Mesmo assim, uma onde de culpa – e de fantasmas – vão perseguí-lo durante muito tempo. Uma questão existencial por excelência: a consequência de nossos atos, independente do quão eticamente justificáveis eles sejam.

Tem também a jogada de Joan de ir para cama para conseguir uma conta para a agência – e Don tentando impedir, sem saber que quando ele o faz já era tarde demais.

Há, pasmem, aquele personagem da mulher que se envolve com o Campbel, que é internada pelo marido, toma eletrochoque, e esquece tudo. Que porrada, aquilo!

E o grande dilema: a procura de emprego por Megan, que almeja a arte, mas que acaba no final indo para publicidade. Só que ela não está mal por causa disso. Já ele, Don, sim. No último episódio, há duas grandes cenas que fecham esse drama: Don sozinho, vendo o teste para o cinema feito por Megan e se dando conta da nulidade daquilo (o que nos remete à cena do super-8 do final da primeira temporada), e o magnífico plano dele se afastando lentamente do cenário de conto-de-fadas em que ela está completamente inserida, com um travelling que não só o acompanha, como sublinha sua melancolia. Talvez o grande momento imagético da série.

Para coroar, a cena final. Don, sozinho em um bar, quando chega uma mulher que pede para acender o cigarro. Ela mostra uma amiga, que estaria interessada nele, e pergunta: “Are you alone?”. A dubiedade da língua inglesa fecha a temporada como uma porrada naquele homem que muitas vezes pensamos controlar tudo.

Fiquemos, então, com Joseph Conrad: “We live as we dream, alone”.

Meus melhores de 2012

Ressucitar o blogue? Só o tempo dirá. O fato é que, ano passado, nem lista de melhores de 2011 houve. Então, estamos no lucro, sem saber o que o futuro nos reserva.

Por enquanto, vai aqui um Top 20 de 2012. As regras são claras: vale todo filme visto em 2012, em qualquer formato, produzido nos últimos três anos (ou seja, de 2010 a 2012). Também evitei aqui a ejaculação precoce das listas de melhores do ano (teve lista saindo ainda em novembro!). Dia 7 de janeiro me parece mais que bom.

Foi  um ano de menos filmes inéditos e mais revisões. Foi um ano de reavaliações de cineastas que nem considero muito (Bertrand Bonello, Wes Anderson) e de reafirmações de alguns que voltaram com força total (Cronenberg, Scorsese, Moretti). Foi um ano também de menos filmes brasileiros vistos (mea culpa).

Vamos, então, ao que interessa:

1- Cosmópolis (Cosmopolis, 2012), de David Cronenberg
Já escrevi um artigo sobre ele na última Teorema, mas ainda assim esse filme imenso merece mais. Não é só um retrato do “novo homem capitalista” frente a um mundo que desmorona, mas um exercício de encenação com o mínimo de movimento (o “mundo” do personagem é que se move), assim como um exercício de dramaturgia a partir de uma verborragia absurda, cujo humor e peso são igualmente dosados e igualmente estranhos.


2- Habemus Papam
(2011), de Nanni Moretti
Falando em humor, verborragia e fim do mundo, aqui vai mais um exemplar aparentemente mais normal, mas que igualmente desesperador. O fim das lideranças, em um mundo que precisa se reinventar. Presente em muitas listas de 2011, mas visto somente no cinema em 2012, em Porto Alegre.


3- L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância
(L’Apollonide – Souvenirs de la maison close, 2011), de Bertrand Bonello
Aqui não há muito espaço para o humor, mas para a dor, para a condição feminina no século XIX, mas também nos dias de hoje – e ainda, de quebra, para o amor. O melhor filme de Bonello, que se reinventa aqui através do olhar cuidadoso a disposição de corpos (às vezes em movimento, às vezes em tédio absoluto) em um espaço de reclusão. Visto no início de janeiro de 2012, mantendo o impacto até o final do ano.


4- A Guerra está declarada
(La Guerre est déclarée, 2011), de Valérie Donzelli
Um dos filmes franceses mais cheios de vida dos últimos anos, talvez por levar à tela com leveza e honestidade esse desespero de salvar à vida frente à morte injusta que se anuncia. Emocionante.


5- A Invenção de Hugo Cabret
(Hugo, 2011), de Martin Scorsese
Outro a quem dediquei artigo na Teorema. Hugo é Scorsese fazendo uma das coisas que sabe mais fazer, isto é, filmes sobre cinema(s). Parece uma grande brincadeira do diretor – cheia de amor, mas ainda uma brincadeira.


6- O Abrigo
(Take Shelter, 2011), de Jeff Nichols
Uma raridade: um filme de horror com quase nenhum fotograma fora do lugar. Quando o horror é palpável ou reconhecível, então, a coisa fica mais impressionante ainda. E ainda tem Michael Shannon.


7- Holly Motors
(2012), de Leos Carax
Um grande elogio ao ator, ou uma grande constatação dos atores que somos todos, ou simplesmente ainda um grande elogio a Denis Lavant. Fragmentado, brilhante, perturbador, irritante, saboroso.


8- Um Verão Escaldante
(Un Été brûlant, 2011), de Philippe Garrel
Um dos filmes mais acessívels de Garrel, esse cineasta dos amores impossíveis. Melancólico como sempre, há novamente uma grande cena de dança, vários momentos de paixão e nenhuma vergonha em filmar nada.


9- Moonrise Kingdom
(2012), de Wes Anderson
A melhor coisa que Anderson fez até hoje, provavelmente porque ele se importa com os personagens como nunca fez antes. Agora, sim, a nostalgia “de brinquedo” do cineasta parece fazer sentido.


10- O Som ao Redor
  (2012), de Kléber Mendonça Filho
Kleber parece atingir um fato raro, principalmente num longa de ficção de estreia: construir um filme habitável, onde ao final estamos completamente familiarizados com seus espaços. Para repensar o Nordeste (e o Brasil inteiro).

Do 11 ao 20, mais ou menos nessa ordem:

J. Edgar (2011), de Clint Eastwood
As Canções (2011), de Eduardo Coutinho
Um Método Perigoso (A Dangerous Method, 2011), de David Cronenberg
Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love, 2012), de Abbas Kiarostami
Fausto (Faust, 2011), de Aleksandr Sokurov
Frankenweenie
(2012), de Tim Burton
Prometheus (2012), de Ridley Scott
Adeus, Primeiro Amor (Un Amour de jeunesse, 2011), de Mia Hansen-Løve
Planeta dos Macacos – a Origem (Rise of the Planet of the Apes, 2011), de Rupert Wyatt
As Neves do Kilimanjaro
(Les Neiges du Kilimandjaro, 2011), de Robert Guédiguian

Do efeito dos raios gama sobre as margaridas selvagens.

Após a chamada derrocada dos grandes estúdios, o cinema americano dos anos 1970 pôde, sem muita maquiagem, falar de um lado não muito glamuroso dos Estados Unidos. É nessa época que acompanhamos os derrotados de O Espantalho (1973, Jerry Schatzberg) ou de Midnight Cowboy (que é de 1969, mas vale), a américa caipira revelada e questionada em Nashville (1975, Robert Altman) e mesmo, em um registro menos “realista”, a família repressora (incorporada pela mãe) em Carrie, a Estranha (1976, Brian de Palma).

Claro que, ao final dessa década, houve também o surgimento do blockbuster, a partir de Star Wars, Tubarão, Superman etc., mas não é sobre a ponte entre um cinema e outro que quero falar (para isso serve a edição em português do livro Easy Riders, Raging Bulls). Quero só lembrar dessa abertura que houve em Holywood, que revelou ou consolidou uma série de talentos e que, no final das contas, possibilitou a chamada Americanarama, termo que circulou nos anos 80 para falar de filmes que retratavam de forma “crítica” o interior dos Estados Unidos, incluindo aí True Stories (1986, David Byrne), Gosto de Sangue (1984, Coen) ou Veludo Azul (1986, David Lynch).

Tudo isso para chegar em The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds (1973), belíssimo filme de Paul Newman que é, à sua maneira, um compêndio ao mesmo tempo do clima depressivo e da liberdade formal dos anos 70. Está ali uma família desajustada composta por uma mãe e duas filhas. A mãe, Beatrice, abandonada pelo marido e posteriormente viúva, vive de bicos e está sempre com dificuldades financeiras. Uma das filhas, Ruth, com problemas neurológicos, vive para namorar, ser cheerleader, mas sente que está seguindo os passos da mãe. A mais nova, Matilda, é completamente centrada nas aulas de ciência (o trabalho que vai apresentar é o que dá título ao filme, que evidentemente tem um significado maior ao final da projeção), sendo vista como uma freak pelos outros, com exceção de seu professor que enxerga nela um grande potencial.

Joanne Woodward constrói uma personagem absolutamente fantástica, over the top como o personagem exige, indo do engraçado ao assustador, ou do sublime ao patético, em questão de segundos. Como a mãe que não enxerga que uma de suas filhas pode sair daquele inferno em que vivem, ela é não somente é o encontro dos derrotados de O Espantalho com os alientados de Nashville, mas também a mãe absurdamente possessiva de Carrie.

Claro que, no seu retrato suburbano de uma mulher que está a todo tempo “representando” para poder aguentar a vida barra-pesada, Newman se aproxima de outro personagem bastante representativo desses EUA deprê dos anos 70, a Mabel de A Woman Under the Influence (1974). O que nos faz pensar no quase clichê: foi Cassavetes, com Shadows, Faces e Husbands, que possibilitou isso tudo?

Mas se não são poucas as semelhanças entre o filme de Newman e os de Cassavetes, seria injusto com o primeiro pensar em simples decalque. Porque The Effect… tem uma coesão que não se encontra muito em Casssavetes. Fruto da peça de onde é adaptada, com certeza, mas fruto também de uma narrativa direta, sem firulas, aparentemente “neutra” de Newman, que sabia exatamente onde colocar a câmera para poder ver e ouvir aqueles atores, aqueles personagens, enfim, aqueles seres vivos que estavam em sua frente. E se não é possível acusá-lo de colocar seus personagens em um “experimento” onde é possível observá-los fria e cinicamente (como um Todd Solondz da vida), é porque Newman parecia saber que a observação naturalista pode ser acompanhada de paixão e humanidade. Exatamente como conclui Matilda ao final do filme.

Burlesque (et plus)

Tio Boonmee em Porto Alegre

Chegando de viagem, com alguns filmes na mente para comentar, vejo que finalmente estréia em Porto Alegre o último filme de Apichatpong Weerasethakul, Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010). Um OVNI em vários sentidos: entre filmes que ganharam Cannes, entre os filmes em cartaz na cidade (a maioria preparando o terreno para a sacrossanta festa do Oscar), no ambiente de shopping (que é onde eu o vi) etc.

Um belo OVNI, aliás. A princípio, mais ingênuo que Síndromes de um Século, seu filme anterior, pelo caráter esotérico da trama, que mistura volta de mortos, desaparecidos que voltam como novas criaturas, digressões de outras vidas etc. Mas, assim como Além da Vida (Clint Eastwood) não é simplesmente uma defesa sobre a crença da vida após a morte, Tio Boonmee também não é o apego cego a uma crença, mas um mergulho nela, tentando ver tudo de mágico que se pode extrair dela. É que Apichatpong acredita no poder do cinema em transformar esse mundo mágico em imagens e oferecer, via seus filmes, essas imagens para que nós possamos entrar nesse mundo mágico. É quase uma ontologia do fantástico.

Não que essa entrada seja fácil. A digressão que há no meio do filme desconcerta até quem já está habituado ao universo do realizador, mas ao se permitir embarcar nesse desvio, podemos ver um dos momentos de maior beleza (visual, auditiva – sensorial, enfim) do cinema recente. O ritmo é lento, os planos são longos (não necessariamente formando planos-sequência), a narrativa estranhíssima. É preciso se deixar levar por essa viagem em um mundo mágico que muitas vezes não faz sentido, embora apele para todos os sentidos.

Um dos pontos altos do filme, já presentes nos outros trabalhos do diretor, é a inusitada mistura de um realismo cotidiano convivendo naturalmente com o fantástico. Como se naquele lugar, para aquelas pessoas, o fantástico (ou, pelo menos, aquele fantástico) fosse algo natural, palpável. O maravilhamento pode vir então de uma cena de diálogo (em uma das frase mais marcantes do filme, o personagem da cunhada fala para Boonmie: “O céu é superestimado.”), de uma criatura improvável como um macaco-fantasma, ou simplesmente da criação climática de vários mergulhos que o filme propõe: mergulho na água, mergulho na floresta, mergulho na caverna. Homem, animal, natureza, fantástico, tudo está ali para ser sentido de alguma maneira.

Do diretor, ainda prefiro Tropical Malady, filme do qual esse último se aproxima em vários momentos, às vezes me cheirando a repetição. O final, outra digressão fantástica, não me convence de todo. Mas Tio Boonmee imprime uma sensação, ou uma coleção delas, que só cresce com o tempo.

Inácio Araújo sobre filmes que ninguém compreende

Excelente o texto do Inácio Araújo em resposta a um comentário em seu blogue.

Merecia mais comentários, mas como estou absolutamente sem tempo, só digo que é uma das mais completas e precisas defesas da liberdade de ver (logo, do prazer de ver) cinema ou de fruir qualquer outro tipo de arte que já vi. Tudo de maneira clara e direta.

Recomendadíssimo.

Vai uma presença?

Sobre duas animações nostálgicas e marginais

São duas animações marginais, cada uma a seu modo e guardadas as devidas proporções, é verdade.

Comecemos com O Mágico (L’illusioniste, 2010). Dirigido pro Sylvain Chomet, que ficou conhecido por As Bicicletas de Belleville. Roteiro de Jacques Tati. Indicação ao Oscar de melhor longa de animação. Ou seja, tem capital cultural para dar e vender, o que tiraria o filme da pecha de “marginal”. Mas, enfim, considerando que o filme não tem diálogos (algumas falas são construídas com grunhidos e algumas palavras), que está passando em poucos cinemas de Porto Alegre e que nenhum deles o exibe em 3D (raridade hoje em dia em termos de desenho animado), não acho exagero a denominação. Na verdade, o que mais me incomoda no filme é justamente essa filiação que ele parece demandar a todo momento: a nostalgia, ao tempo “mágico” que se foi, encarnado na genialidade de Tati.

Só esta não tinha nada de nostálgico: sua crítica ao mundo “moderno” era mais um apelo ao humano do que um elogio aos velhos tempos. Mr. Hulot era um desastrado, um dos maiores da história do cinema, porque sua figura expressava esse desajeitamento com o mundo que surgia, cheio de máquinas novas que escondiam o que o homem tinha de mais puro – uma visão ingênua, certo, mas genial na graça que produzia, graças à arquitetura absurda – que muitas vezes nos lembrava que talvez aquele absurdo já estivesse tomando conta do mundo (o trânsito em Traffic é para mim o melhor exemplo).

Daí sua figura grande, batendo-se onde não deve, virando-se gentilmente para pedir desculpas, quando o mundo estava interessado em outra coisa. A repetição desse gestual em O Mágico, por mais fiel que seja ao “original”, é apenas uma pálida sombra de algo que já se foi. E esso é o pior efeito da nostalgia: a estagnização em algo que já passou, que era, bradam os nostálgicos, inquestionavelmente melhor e mais bonito. Daí que a marginalidade de O Mágico também funciona como commodity, pronta para ser consumida como “sensibilidade”.

Se o filme resite apesar disso é porque o traço e as cores do Chomet, que remetem a alguns desenhos da disney dos anos 70, têm uma força indiscutível, e porque a jornada que o filme propõe não enche o saco com passagens desnecessárias. Ah sim: como faz bem um desenho mais silencioso.

Já que a palavra é nostalgia, vamos para o outro marginal do grupo, Brasil Animado (2011). Um desenho animado, primeiro filme em 3D lançado no Brasil, com 250 cópias. Também aí, a princípio, nenhum traço de marginal. Mas é só olhar de perto, para mudar de idéia. Longa brasileiro de animação, com tecnologia nova, razões suficientes para levantar suspeitas (porque o domínio da tecnologia ainda é, para o espectador médio, o primeiro pecado do cinema brasileiro, seguido de perto de algo genérico que ele chama de “roteiro”). Resultado: pouco mais de 22 mil espectadores em uma semana, o que dá cerca de 90 espectadores por cópia, ou ainda pouco mais de 12 espectadores por dia. Na sessão que fui, em um shopping, havia 9, comigo e meu filho.

Essa é sua condição marginal, querer entrar à força em um mercado. Mas e o filme, o que ele é? Poia temos aqui um dos mais perfeitos exemplos de um fillme que corresponde exatamente à análise do produto (boa parte do público médio também confunde essas duas coisas, mas isso é outro assunto). A imagem de subproduto é a que fica. Mais especificamente, do subproduto de programa de TV, por três motivos:

1- Por causa de sua vocação “educativa”, pois o filme se propõe a revelar o Brasil nas suas maravilhas mais diversas. De boas intenções Brasília está cheia, e mesmo que aqui e ali pipoquem “críticas” (ao europeu que levou nossas riquezas, por exemplo), dá para dizer sem pestanejar que o filme encheria de orgulho nossos presidentes militares, pelo ufanismo tacanho e visão antiquada do que deve ser educacional.

2- Mas imaginemos o filme como programa de TV, então. Seria com certeza menos penoso, ver episódios de 15 minutos sobre as diferentes regiões do Brasil. Mas mesmo assim ele perderia feio para outros produtos parecidos, como por exemplo a genial série “Quelles drôles de bêtes“, que foi exibida no Brasil há alguns anos (não lembro o nome em português, onde um lagarto chamado Henry apresentava, em cada episódio, um aspecto do mundo animal). Assim como em Brasil Animado, esse personagem fazia comentários engraçados em cima de cenas documentais. Só que eles eram espirituosos, nada óbvios, numerosos. Tudo aquilo que os de Brasil Animado não são.

3- por fim, o aspecto que mais me intriga. A diretora e o roteirista tem experiência com desenhos animados na TV. Imagina-se que conheçam outros desenhos do gênero, se não “Quelles drôles de bêtes”, então algumas das centenas referências em animação que existem e que tratam o humor infantil de uma maneira bem diferente da que o filme trata. Dos desenhos do Cartoon aos do Discovery Kids, das produções canadenses (que vez ou outra passam no D. Kids ou na TV Cultura) aos filmes da Pixar, o que se vê é que não dá para fazer graça com o óbvio, mesmo quando é para criança, ou talvez principalmente quando é para criança. Mas a julgar pelas constrangedoras piscadelas aos adultos da platéia , o problema não está ligado ao fato de ser um filme infantil. Referências a Avatar, Fernando Meirelles e o Festival de Gramado, dezenas de lugares-comuns “regionais” que parecem ter vindo de um A Praça é Nossa, duas músicas de Ed Motta e Wilson Simoninha que repetem a exaustão; tudo isso mostra que o problema do filme está, infelizmente, mais embaixo.

Ou seja, talvez Brasil Animado (2011) seja mais perto de Brasil Animado (1928) do que alguém poderia imaginar. É, por tudo isso, um filme involuntariamente nostálgico, preso em um passado que ele acredita de alguma forma fazer ainda sentido, mas que ele não consegue nem ao menos transformar em moeda de troca e vender.

Para não falar que o filme é um desastre absoluto, vale dizer que o 3D é bom (o que me convence cada vez mais que o efeito é completamente irrelevante para o filme, assunto a que quero retornar em breve por aqui) e que meu filho de 8 anos gostou bastante (o que se deve, acho eu, a uma curiosidade ainda grande sobre um país que ele ainda conhece muito pouco, mas isso é um assunto a que não pretendo retornar aqui).

A última gravação de Orson Welles